animalidade
“Ela se emociona demais com primeiros encontros” disse, enquanto sua cachorra pulava em cima da moça que, sentada no chão, terminava de amarrar os patins. Fazia um dia de sol no meio do inverno, daqueles que ajudam a respirar no meio do cinza da estação, uma espécie de veraneio que tira as pessoas de suas casas. “Não tem problema” e a cachorra lambeu seu rosto. Era bom se sentir amada logo de cara, apenas por existir ali naquele momento. Lembrou de uma discussão que teve uma vez, sobre nossas semelhanças e diferenças com os animais. A principal, que sempre marcava para ela, era de que nós temos consciência sobre nossa própria morte. Melhor: temos consciência sobre nossa vida. Não apenas vivemos, mas podemos contemplar o que está acontecendo e tirar conclusões sobre isso. Enquanto a cachorra apenas estava presente, contente com encontrar uma nova amiga, ela ponderava se também se emocionava demais com primeiros encontros. Fazia tempo desde que conhecia alguém pela primeira vez, mas lembrava de alguns momentos que a intensidade era tamanha que quase se materializava no ar. Conhecer alguém era como ler um livro, buscando pedaços no qual a gente se identifica. E como era bom quando acontecia alguma coincidência. “Então você também gosta dessa banda?”, poder trocar algum gosto que julgava não compartilhar com mais ninguém no mundo. E também quando as ideias não batem e, na diferença, abrir perspectivas que não conseguia antes ver. Alguns instantes em que não há uma reflexão, apenas a animalidade de viver o momento. A cachorra e sua dona foram embora e ela levantou e começou a patinar. Botou nos fones de ouvido a música que sua ex havia apresentado. Era da trilha sonora de um filme que ela já havia assistido mais de uma vez. Começou a pensar sobre as segundas vezes, o segundo encontro com alguém. Quando a intensidade perde lugar para o conforto. Ultimamente ela estava reassistindo uma série que via na infância e se animava sabendo o que ia acontecer. Sem surpresas, podia se distrair e voltar a prestar atenção, as coisas aconteciam como já estavam previstas. Lembrava de uma conversa que teve com uma amiga: enquanto ela defendia as primeiras vezes, buscar sempre algo novo, sua amiga falava sobre cada vez ser, de certa forma, uma primeira vez. “Porque não somos sempre a mesma pessoa” ela dizia. Ela sabia que não era a mesma criança de quando assistiu a série pela primeira vez, mas de certa forma assistir de novo fazia ela resgatar aquela mesma sensação. Ainda assim, por ter consciência disso, já não era a mesma pessoa. Isso diz muito sobre amadurecimento, sobre a voz da experiência que ela sempre ouviu falar. A vida era uma sequência de outras vezes, além da primeira vez, e cada vez fazia algo ser mais fácil, mais natural. “Mais chato também” pensou ela, que gostava da excitação das coisas novas. Sentou-se para tirar o patins e viu ao longe passar a mulher e sua cachorra. Não teve um segundo encontro, ficou apenas com a memória.
Esse texto é parte ficção parte realidade. Das partes reais, quero deixar algumas indicações:
Música: The Dø - Dust It Off
The Dø é uma banda de indie pop finlandês-francesa que o algoritmo da minha conta no Youtube insiste em tocar toda vez que ponho no aleatório. As músicas são muito gostosas de se ouvir, do tipo que faz a gente querer se mexer. Vale a pena conferir.
Filme: I Origins
Me emociono toda vez que assisto esse filme. Considero uma obra-prima porque mistura vários temas que eu gosto, focando principalmente sobre ciência e religião. Sem contar que a estética é linda demais!
Série: Gilmore Girls
Minha série de conforto. Fala sobre a vida de duas mulheres, mãe e filha, que têm apenas 16 anos de diferença. É muito bom acompanhar as relações que elas constroem, sendo uma mistura perfeita de comédia, drama e romance. Toda vez que assisto eu me assusto com a quantidade de referências que conseguem colocar em cada episódio, sempre aprendo um pouquinho mais sobre filmes, música e cultura num geral.
Amiga: Paula
Precisei referenciar também de onde originou esse pensamento que marcou fundo em mim. Da Paula não faço indicação, pois é edição limitada, só deixo registrado como é bom ser sua amiga.